Brasil, meu Brasil brasileiro. Como disse anteriormente numa postagem, temos o melhor cinema do mundo, graças ao excelente nível dos nossos artistas. Mas, parece que nos falta heróis da vida real. Na verdade temos, e vários, em todos os campos. Sem falso moralismo, o fato é que, numa sociedade onde as pseudo-celebridades são idolatradas, elevadas ao posto de astros e estrelas, mesmo que não tenham talento, muito menos valores pessoais para inspirar outras pessoas, não é de se estranhar que essas figuras façam sucesso e vendam produtos relacionados aos seus nomes. Alguém, que eu não recordo quem, certa vez disse que o cinema reflete a realidade. Por isso, mesmo pessoas que pisem na bola acima da média da maioria das pessoas, como por exemplo a bandidagem (
400 contra 1,
Carandiru, Meu nome não é Jonhny, entre outros.
VIPs está chegando aos cinemas no fim de semana e os bandidos que assaltaram o Banco Central, em breve também estarão nas telonas) e outras figuras nada exemplares, têm suas vidas retratadas nas telonas, de formas distorcidas, na maioria das vezes tornando-as verdadeiros heróis nacionais. Chegou a vez de uma garota de programa engrossar esta lista.
Na trama, Raquel é uma adolescente adotada por uma família classe média alta que, sem motivo aparente justificado no filme, sai de casa e entra para o mundo da prostituição, inicialmente indo morar num prostíbulo, onde recebe o nome de Bruna, e, posteriormente, o apelido Surfistinha. Tempo depois, sai do inferninho, administra sua própria "carreira", adquire seu próprio quantinho para receber os clientes, se envolve com drogas, vai ao fundo do poço e dar a previsível volta por cima. Você não assistiu, mas está com a sensação que já viu este filme? Não se espante. Normal. O filme, apesar de ser baseado em fatos reais, está lotado de clichês.
Pois é galera, não se iludam. Cinebiografias, sejam nacionais ou gringas, não retratam fielmente a realidade. Semana passada, numa entrevista ao programa
Pânico da Jovem Pan, a própria Bruna afirmou que os roteiristas mesclaram sua vida com ficção (até um irmão, que na vida real ela não tem, deu as caras no filme). Mesmo que eu não tivesse escutado esta entrevista, em momento nenhum acreditei que vi 100% ocorrido na realidade da moça, justamente por essa falha grosseira ser tão comum em filmes, de qualquer nacionalidade, baseados em fatos reais (ou alguém acredita, por exemplo, que
O Grande Dragão Branco é 100% fiel aos fatos ocorridos com o lutador Frank Duxx?). Mas antes de me aprofundar sobre o roteiro, vamos logo aos pontos positivos do filme.
O elenco está afiado, com destaque para Deborah Secco que apesar de fazer o seu personagem habitual de "moça doidinha que faz de tudo para aparecer", supreende. Mesmo não se parecendo fisicamente com a verdadeira Surfistinha, Deborah consegue nos convencer que é a própria (leia-se: a personagem do filme e não a figura real), e não uma atriz global, acrescentando mais uma personagem habitual, ao seu currículo. Ela dar um show de interpretação, estando bem a vontade na personagem, em todas as suas fases, até mesmo quando interpreta a personagem adolescente, apesar de cercada de verdadeiros adolescentes, uma falha grosseira da produção, na escalação dos figurantes.
Apesar de girar em torno de uma garota de programa e o seu ofício, o filme em momento nenhum apela para as cenas de sexo mais picantes. Em comparação aos filmes nacionais dos anos 70 e 80, até que é comportado, e limita-se a mostrar os seios de Deborah Secco a cada cinco minutos de projeção. As cenas de mastubação feminina e lesbianismo do filme
Cisne Negro, foram bem mais fortes.
A trilha sonora é outro ponto positivo do filme, mesclando vários ritmos, nacionais e internacionais, que vai do rock pesado do Radiohead até um brega tosco de sei lá quem, bem cara de inferninho mesmo. Todas as músicas devidamente encaixadas no filme. Se tem um ponto que a crítica e público concordaram é em relação a excelente trilha.
Bruna Surfistinha é um ótimo filme. Mas, assim como 99% de cinebiografias, o problema está no roteiro, onde se comete o grave erro de maquiar a realidade e enaltecer de forma heróica os cinebiografados, quase transformando-os em personagens de contos de fadas. No caso de
Bruna Surfistinha, na tentativa de enaltecer a figura da moça, que na vida real saiu de casa pela simples vontade de se prostituir (a própria Bruna já afirmou isso em várias entrevistas, motivo este evidentemente não mostrado no filme), os roteristas reuniram alguns clichês, com direito ao homem apaixonado e fiel amigo, que faz de tudo para a mocinha sair da prostituição, a melhor amiga trocada por uma falsa amiga que no momento mais difícil da protagonista mostra sua verdadeira face de vilã, abandonando-a, e até mesmo uma cena de balada na night entre amigas
a la Sex and the city.
O roteiro tem um agravante a mais: ao não retratar a dura e difícil vida de uma garota de programa, mesmo não intencionalmente, o filme chega a fazer uma apologia a prostituição, já que frases do tipo "
Você ganha mais fazendo programa do que atrás de um balcão de loja",
"Sair de casa para não depender de ninguém", "
Você pode realizar os seus sonhos como eu realizei", são ditas com enfâse e de forma mais marcante, do que a rara frase
"não é fácil esta vida". Até mesmo o momento fundo do poço da moça é menos impactante que o clima
"A vida é uma festa" de boa parte do filme. Consequentemente, quem for cabeça de vento e já tiver a curiosidade de entrar para este mundo, o filme pode servir como desculpa de um forte incentivador.
Volto a dizer: o filme é ótimo. Mas jamais devemos esquecer que, apesar de uma ou outra cena ser baseada em fatos reais, é uma obra de ficção, logo, a realidade é bem mais dura e muito menos colorida e festiva do que retratada na tela. Qualquer pessoa que, neste exato momento que escrevo esta postagem, está vendendo o seu corpo por dinheiro, pode confirmar melhor do que eu esta afirmação.
Rick Pinheiro.
Cinéfilo.
|
As duas faces de Bruna Surfistinha: personagem e pessoa real.
Dura realidade é maquiada nas telonas. |